3.9.15

Dos refugiados

Vi aquela fotografia de Aylan, a criança que deu à costa europeia já morta. Como tenho visto imagens de gente, igual a mim, mas com caras desesperadas. Tenho lido histórias de gente que foge da guerra, da fome, da perseguição. Gente que traz a avó de cadeira de rodas do Afeganistão e até a carrega ao colo quando é preciso.
E não posso ficar indiferente. E não fico.

Aquela gente é parte deste mundo e merece as mesmas oportunidades que eu. Seja na terra onde nasceram ou seja aqui ou ali. A mim pouco me interessa. Mas interessa-me a forma como têm sido, em geral, tratados.

Começa logo pelo termo “migrantes”. Mas quem é que decidiu aplicá-lo a uma realidade destas? Não é um migrante alguém que decide partir em busca de uma vida melhor e ponto final? Mas não é um refugiado aquele que é forçado a saír do lugar a que sente até pertencer? Essa é a diferença e é nesta última categoria que esta gente se enquadra ou, quando muito, grande parte desta gente se enquadra, disso não tenho dúvidas.

O que vejo acontecer no acolhimento a esta gente é também uma grande confusão. O tratamento a que são submetidos pelo governo fascista húngaro em Budapeste é vergonhoso. A marcação com números nas mãos feita pelas autoridades checas é uma negra lembrança de outros tempos na Europa que têm que ser evitados nem que seja pelo que simbolizam. A vergonha que é Calais com a demissão das responsabilidades francesas é um atentado à dignidade dos seres humanos sobretudo na terra da Revolução.

A União Europeia sempre me pareceu ser fraca na política externa. Não que para isso precise de intervir feita um Golias como os Estados Unidos, mas em termos de ser clara nos seus propósitos, de concretizar o melhor para o mundo e – não sejamos ingénuos – para si, a coisa nunca correu por aí além (tirando um ou outro exemplo, talvez no Médio Oriente). E a forma como está a a lidar com este afluxo de gente a chegar às suas costas tem sido absolutamente atroz. A Espanha e a Itália têm alertado para isto há anos. E nada. A Grécia urra agora. A verdade é que nada acontece enquanto os burocratas trocam ideias e decidem que uns vão para aqui e outros para ali.

E depois precisamos não esquecer que países como a Macedónia ou a Sérvia não pertecem à União Europeia e que por isso as regras são um nadinha diferentes.

Posto isto há questões que se levantam. Há desde logo os senhores da extrema-direita com as suas manias de que os refugiados vêm para aqui tomar conta disto e tapar as gajas todas. Não é verdade. Mas a verdade é que, quer queiramos quer não, temos que viver com a realidade de que esta gente existe e que tem uma opinião e uma opinião sobretudo populista. E por isso, perigosa.
Depois temos os medrosos que acham que temos que obrigar esta gente que aqui chega a viver como nós. E eu relembro-os que não, não temos. A cultura europeia baseia-se na democracia sobretudo laica, na diversidade. Outros governos não são assim. Não são necessariamente as culturas. Nem se cortam mãos em todos os países muçulmanos, por exemplo. Mas também é preciso não esquecer que ainda há gente na Europa que se mostra contra a entrada da Turquia na União por ser maioritariamente muçulmana. Como se a União – ou a Europa! – fosse um clube cristão. Giro e um todo-nada irónico, não é?

Eu sou da opinião que haja alguma adaptação. E é inevitável que haja. Não na primeira geração que chegue. Talvez não na segunda. Mas depois. Quando as crianças estiverem na escola, mais integradas. Quando as pessoas trabalharem junto dos outros. Quando todos aprendermos juntos uns dos outros. E virmos que temos todos a ganhar, na verdade. É-me indiferente se uma mulher anda tapada – desde que possa escolher fazê-lo – mas não me é indiferente ver gente ser perseguida, maltratada, morta só porque quer viver com dignidade.
Mais: quererá esta gente de facto ficar connosco para sempre? Não quererão regressar aos seus assim que sentirem estar em paz até para poderem ajudar na resconstrução do que é seu?

E também gosto daquele argumento maravilhoso: a eles dão-lhes tudo e a mim não me dão nada. E eu digo: olha, só por dizeres uma coisa dessas, já nem mereces! Mas reconsidero, porque o assunto é sério e afinal digo que estas pessoas passam por uma experiência inenarrável para chegarem até um porto seguro. E o mínimo que podemos fazer é dar-lhes algum conforto. Que talvez nunca venham a considerar a sua casa.

E custa-me ver que a situação de fundo continua esquecida: o que causa o desespero desta gente toda. A miséria de tanto sítio em África. As atrocidades cometidas na Eritreia. A desintegração da Líbia. A falta de entendimento do Ocidente de que nem todo o mundo está preparado para a democracia ao seu estilo que resulta num ISIS na Síria e no Iraque. Nos problemas ainda extremistas do Afeganistão.
 
Por fim, também temos que ser pragmáticos e assegurar que, ao mesmo tempo que damos apoio a todos os que necessitam, asseguramos que não somos trespassados por degenerados vindos dos confins da Síria, de Kandahar ou, não nos iludamos, da Arábia Saudita. Porque a ameaça é real.